Quando eu quebrei a perna sonâmbula em 2022 eu senti muito medo. Da dor, da cirurgia, das possíveis sequelas. Eu fiquei mais vulnerável do que em outras vezes em que eu também estive à mercê dos outros. Quando eu já estava quase imóvel, com morfina o suficiente pra conseguir respirar depois de uma madrugada de desespero, eu fui transferida para um quarto.
Foi quando a minha irmã apareceu. Ela disse que a minha perna dilacerada não era nada, que as pessoas se recuperavam o tempo todo. Ela cortou na hora todas as minhas tentativas de desabafo.
Ela ficou no quarto exatos quarenta minutos. Ajeitou meu travesseiro, verificou as acomodações como se estivesse em um teatro infantil, desses em que as ações precisam ser exageradas e quase cômicas.
Depois disse que iria ligar pra uma cuidadora pra ficar comigo durante a noite, já que ela não poderia por ter aula cedo.
Eu tinha liberado meu marido pra dormir em casa porque ele estar descansado era uma prioridade pra mim, minha cirurgia seria no dia seguinte e eu precisaria de bem mais ajuda.
E então minha irmã sumiu. Eu gostaria de dizer que ela só se ausentou da minha vida mesmo, mas pouco antes da minha cirurgia no dia seguinte ela mandou mensagem pra que meu marido buscasse no Detran o carro dela que tinha sido apreendido.
Ela não só não perguntou como eu estava como queria que num momento crucial eu ficasse sem a única pessoa que eu tinha como amparo. Marido ignorou a mensagem. Ela não voltaria a entrar em contato por semanas.
Hoje não tenho sequelas da queda mesmo tendo ficado dois meses sem andar e agora contar com uma placa de titânio e 17 parafusos. Mas eu precisei usar cadeira de rodas um tempo, e de ter ajuda pra me mover e tomar banho, o que felizmente eu consegui sem grandes problemas porque marido estava de férias.
Eu nunca esqueci o jeito com que a minha irmã olhou pra mim no pouco tempo em que esteve no hospital. Eu me lembrei muito de quando Primo Levi em É isto um homem contou de como foi trocar olhares com um nazista no campo de concentração em que ele estava:
O cérebro que dirigia esses olhos azuis, essas mãos bem cuidadas, dizia: ‘Esse algo que está na minha frente pertence a um gênero que, obviamente, convém eliminar. Neste caso específico, deve-se antes, examinar se ele não contém ainda algum elemento aproveitável’.
Enquanto eu recebia de conhecidos e semi-conhecidos na internet mensagens de apoio a minha irmã continuou em silêncio. Eu só ouvi dela muito tempo depois, quando ela perguntou se havia alguma coisa errada, já que eu teria sumido.
Eu gostaria de ter tido forças pra encerrar a nossa relação ali mas qualquer pessoa que já esteve num relacionamento abusivo pode te dizer que nada é tão fácil quando poderia parecer a um olhar ocasional.
E qualquer um que jogue na cara que já tinha percebido isso antes só aumenta a sua vontade de morrer.
Minha irmã nasceu em 1989 quando eu tinha quatro anos. Minha mãe contava que eu teria pedido por ela, mas eu não tenho nenhuma lembrança disso. Fato é que nos vimos pela primeira vez num quarto de hospital, eu esperando alguém que já poderia brincar comigo e encontrando ao invés disso um dos bebês mais feios do mundo. Ela nasceu com baixo peso, provavelmente por conta de um sopro que ela acabou operando aos quatro anos.
A dinâmica de irmãs mas velhas e mais novas não costuma ser diferente mesmo em vários lares. Eu tinha o peso do mundo nas costas, ela podia ser livre pra conseguir até o que tinha sido proibido pra mim na idade dela. Eu era a aluna modelo que passava mal com a ideia de perder uma posição no ranking da escola, ela tinha tantos problemas que meus pais consideravam um certo milagre que ela chegasse a terminar o ensino médio.
Apesar disso eu acho que nos demos bem nesses primeiros anos, provavelmente porque ela esperava ser cuidada por todos, inclusive por mim.
Um dia quando a minha irmã tinha 18 anos ela foi acusada pela empregada da nossa casa de ter furtado dinheiro da carteira do meu pai. Essa mulher queria avisar meu pai mas disse que foi ameaçada pela minha irmã. Entre essas ameaças estava colocar em perigo os filhos dessa mulher que moravam em outra cidade. Tudo parecia absurdo demais e eu fiquei ao lado da minha irmã, perdendo a paciência e discutindo verbalmente com a mulher.
Meu pai resolveu ter uma posição mais conciliadora, ouviu o que a empregada tinha a dizer. Ela mesma acabou concluindo que seria impossível permanecer na minha casa e escolheu sair.
Eu nunca soube se meu pai acreditou nas acusações, mas é provável que sim.
Muitos anos depois a minha irmã me confessou rindo que era tudo verdade, ela realmente tinha ameaçado a mulher e os filhos dela. Nas palavras dela isso parecia nada. Eu tive vontade de vomitar com a ideia de que sem querer eu tinha sido muito injusta com uma pessoa que estava numa posição vulnerável em relação a nós.
Narcisismo é uma palavra que aparece muito hoje em dia, relacionada tudo. Eu nunca tinha prestado muita atenção, achava que era coisa de políticos e talvez de modelos e atrizes.
Eu não sabia que envolvia falta de empatia, mentira, manipulação, usar as pessoas como recurso, descartar quando não serve mais, e nunca nunca assumir as próprias responsabilidades. Qualquer acusação volta pra quem acusou, mesmo que não faça o menor sentido.
Quando meu pai piorou do Alzheimer, mesmo antes do diagnóstico, nós precisamos agir rápido. A irmã dele se aproveitou do estado frágil em que ele estava pra furtar quase metade do que ele tinha no banco. Processo correu por oito anos, ela perdeu mas nós não vimos nem a cor desse dinheiro ainda.
Como eu estava envolvida demais em cuidar do meu pai, em casa ou em casa de repouso, ficou combinado que minha irmã seria a curadora dele. Esse foi o maior erro da minha vida.
Depois de anos de chantagens emocionais, brigas com argumentos circulares, gastos exorbitantes, contas importantes que deixaram de ser pagas, inclusive de casa de repouso e de cuidadores, a curatela chegou ao fim com a morte. A partir disso eu me tornei inventariante.
O que eu encontrei no banco foi o caos, dívidas de cartão de crédito e investimentos zerados. O valor era muito maior do que o que a nossa tia havia roubado.
Eu passei a ter tanta ansiedade que bruxismo voltou, sonambulismo também e não é raro que a noite seja pontuada por gritos meus.
Hoje em dia eu vivo dois lutos, o da morte do meu pai e o da perda da minha irmã. Eu me sinto culpada mesmo tendo sido vítima, mesmo tendo tentado juridicamente agir antes.
Minha família de origem não existe mais, meus pais mortos, minha irmã bloqueada mas que povoa meus pesadelos, outros familiares que até existem mas eu tenho pouco contato.
Eu sinto que não tenho motivos mais pra continuar existindo, nossa família foi um erro, um acidente infeliz, e só falto eu sumir também pra que pro universo nossas existências miseráveis nunca tenham acontecido.
Eu sinto culpa de ter trazido tantos problemas pro meu marido, a melhor pessoa que eu já conheci na vida. Mas que agora tem insônia e ansiedade pensando em todo o dinheiro que tivemos que usar pra pagar advogados e mesmo as despesas funerárias do meu pai. Minha irmã não poupou um único centavo pra elas.
Eu não sei realmente o que fazer por agora, debatendo sempre se eu estou num episódio depressivo ou se o mundo desabou com tanta vontade sobre a minha cabeça que seria impossível mesmo uma pessoa saudável se sentir de outra forma.
Até a academia, que é o que me dava alguma sanidade, eu tenho mantido em suspenso porque as dores da fibromialgia voltaram de um jeito como eu não sentia há muitos meses.
Eu sinto que não consigo ser amiga de ninguém que não tenha grandes dramas familiares porque minha simpatia pra todos os outros problemas foi drenada.
Minha memória do meu pai foi maculada e eu só consigo lembrar de tudo que ele tinha de parecido com a minha irmã. A impulsividade, o controle, o fazer da vida da minha mãe um inferno até o divórcio deles.
Eu sei que meu pai era melhor, ele tinha empatia, ele queria o nosso bem, ele fez o possível apesar das muitas limitações dele, inclusive psiquiátricas, mas tem sido muito difícil.
Se “esperança é a coisa com penas” como diria a Emily Dickinson ela só voou pra bem longe, e pelo menos agora eu realmente mal consigo ver.
Tenho uma pessoa na minha família directa que é narcisista. Demorei muitos anos a entender até porque não sabia distinguir as verdades das mentiras, tenho medo dela e das reacções dela. Depois de muitos anos de terapia, consigo ver a situação com algum distanciamento. Permito que fique na minha vida desde que não me prejudique, mas não admito faltas de respeito. Tento entender o que lhe terá acontecido para que seja assim. Muito provavelmente um trauma na infância, ou vários, que nunca nos quis contar porque é impossível vender outra imagem que não a de pessoa forte e virtuosa.
Um abraço muito grande para ti. Não é nada comigo, mas eu iria num médico. Embora a depressão seja explicada pelos acontecimentos, não a torna menos depressão e é importante actuar antes de piorar. Sorrir e ter alguma alegria, como a do ginásio, mesmo em tempos tão difíceis, é essencial para a sobrevivência. Na forma como eu vejo, tu foste vítima de vários abusos. Isso não se cura sozinho. ♡
Amo seu texto, amo sua sinceridade em dizer seus sentimentos. Tudo muito verdadeiro, sem ficar floreando pra trazer uma lição de vida no final dele. Porque às vezes a vida é muito dura e é isso, não tem lição pra aprendermos nem mensagem bonita pra deixar. Sinta meu abraço, e nunca deixe de escrever.