Quando você tem um acidente, quebra a perna, faz cirurgia e passa vários dias no hospital você acaba se acostumando a ver a vida de baixo, as macas acabam sendo boa parte do seu mundo.
No começo é um sinal de esperança, os heróis do Samu chegaram, cena de fim de filme. Enquanto isso, os bêbados do prédio vizinho acenam e gritam que vai ficar tudo bem. Eles seguem gritando até a ambulância sair da rua.
A maca é um não lugar, mas ela também é todos os lugares. Com ela você pode conhecer vários espaços do hospital deitada e com o pijama que usava quando se acidentou.
Que sorte que você usava uma coisa minimamente decente quando levantou dormindo e caiu no quarto, já que com várias fraturas e a perna torta de tão quebrada ia ser difícil vestir outra coisa.
Deitada eu me distraía com as mudanças de lâmpada, de teto e mesmo do barulho das rodas em diferentes pisos. Era como viver aquela cena de O Iluminado em que o Danny anda de triciclo pelo hotel e deixamos de ouvir o ruído quando ele passa por um tapete.
A diferença é que eu não fazia nada, eram os muitos técnicos de enfermagem que me conduziam como numa estranha prova de revezamento olímpico.
Eu queria ser tratada como uma pessoa, não como um corpo com defeito. Queria ter recebido morfina assim que cheguei e não ter passado a madrugada tomando só dipirona como numa esquete de teatro do absurdo. Queria que me levassem a sério quando eu contava que tinha fibromialgia, e por isso mais sensibilidade à dor do que as outras pessoas.
Mas o hospital é uma linha de montagem com muitos formulários e poucas respostas. Os funcionários quase todos são extras de uma distopia, eles ouvem, mas não entendem, são cordiais, mas não ajudam, cumprem ordens, mas não se sabe bem de quem, já que os médicos da madrugada se escondem mais que o Mágico de Oz na Cidade de Esmeraldas.
Acabei entregando meu corpo em sacrifício aos deuses do hospital porque assim era mais fácil. Não questionar os muitos furos no braço em busca de um acesso, nem o conteúdo das bolsas, nem se o ortopedista já tinha chegado.
Em troca eu esperava me ver livre da grande Dor, aquela que me fez gritar e chorar por horas como se estivesse em trabalho de parto, a que eu não conseguia entender e mesmo agora não consigo explicar.
A Dor aumentou tanto meus batimentos que o meu smartwatch registrava pontos sozinho, certamente sonhando feliz que eu corria uma maratona ao invés de estar naquele lugar.
Com o sol veio o ortopedista, a tão desejada morfina e a notícia de que eu teria que operar. Em quinze minutos eu tive todas as emoções juntas, mas pude cochilar com elas pela exaustão e pelo torpor do remédio.
A cirurgia foi no dia seguinte, a minha primeira sem contar a correção de grau que eu fiz nos olhos com laser e sem sangue. Pela primeira vez fiz o exame de risco cirúrgico, que é quando o hospital te revira do avesso pra garantir que você não vai morrer quando te abrirem ali dentro.
Duas cardiologistas jovens vieram me avisar de forma solene que eu tinha vários porcentos de chance de voltar do centro cirúrgico.
Na maca eu fui levada até a sala do pré-operatório. No meio do caminho disseram ao meu marido que ele poderia se despedir de mim ali, e ele ficou tão atordoado que beijou a minha testa usando máscara. Ele também seguiu tão nervoso que nem foi pro banheiro durante as cinco horas que a minha cirurgia acabou durando.
Nesse momento eu já chorava mais de dor que de medo, o efeito da morfina já tinha passado. Fui ignorada até que chegou a anestesista, o meu anjo, a minha fada azul do Pinóquio, o ser de luz fluorescente que fez o que parecia impossível naquele inferno iluminado: ter empatia pelo meu sofrimento.
Quando eu disse que tinha fibromialgia ela respondeu coitada, deve estar sofrendo muito. E aí adiantou a minha sedação pra que a tortura acabasse.
Eu adoro a sensação de quando a anestesia geral bate, aquele torpor que vai tomando conta e contra o qual nada se pode fazer. Enquanto eu dormia aplicaram também a anestesia raquidiana, a raqui da cesárea, aquela que paralisa tudo da cintura pra baixo.
Acabou sendo bem útil porque eu despertei no meio da cirurgia, mas tudo seguiu normal porque eu não podia mexer as pernas. Vi só um pano verde na minha frente, perguntei pra anestesista se isso era normal e ela me colocou pra dormir de novo.
Já faz um mês e meio desde a queda e eu tento pensar menos na época em que meu osso só tinha osso e a minha perna não tinha um corte pequeno no meio e um grande no tornozelo. Eu me sinto uma fantasia de Halloween permanente, a criatura do Frankenstein, vários pedaços costurados em um.
Mas meu mundo voltou a acontecer na vertical, ainda que com muletas. E a Dor praticamente se foi. É o possível por agora e pensando no percurso inteiro acaba sendo o bastante.
Já faz um mês e meio desde a queda e eu tento pensar menos na época em que meu osso só tinha osso e a minha perna não tinha um corte pequeno no meio e um grande no tornozelo. Eu me sinto uma fantasia de Halloween permanente, a criatura do Frankenstein, vários pedaços costurados em um.
Mas meu mundo voltou a acontecer na vertical, ainda que com muletas. E a Dor praticamente se foi. É o possível por agora e pensando no percurso inteiro acaba sendo o bastante.
Ter conseguido escrever esse texto significou muito pra mim. Não sei se foi o trauma, os remédios ou muito tempo imóvel olhando pra parede, mas meu cérebro virou uma gelatina. Eu só conseguia ver tiktoks e ler quadrinhos.
E se quiser conversar, contar uma história parecida, ou só perguntar mais detalhes da minha saga é só responder esse e-mail.
Até a próxima!