A outra mãe do meu pai
Texto escrito em 2020, mas muito oportuno agora em que a morte do meu pai me faz querer atar as tais pontas da vida
Chovia muito quando conheci Cotinha, a avó paterna de quem eu nunca tinha ouvido falar. Pra falar a verdade ela já me conhecia, já havia me visto bem pequena (menor que os seis anos que eu tinha nessa época) e até me apresentado à mãe dela, uma velhinha com olhos muito azuis e já inúteis.
Aliás, esses olhos eram mencionados de vez em quando pela minha mãe: “pareciam pedrinhas coloridas!”
Essa bisavó já morreu, assim como minha mãe, meu pai, Cotinha e a maioria das pessoas mencionadas nessa história.
A gente só encontrava Cotinha por insistência da minha mãe, que acreditava demais nesses tais laços biológicos que uniam as pessoas. Meu pai foi criado por outra mulher, minha avó Izaura, que nós visitávamos com alguma frequência em Vitória da Conquista. Eu gostava da casa dela, que tinha quintal, pés de café, acerola, e ficava num bairro sem trânsito e idílico aos meus olhos de criança.
Cotinha vivia em Planalto, uma cidade menor do Sudoeste da Bahia, não muito distante de Conquista. No caminho pra lá tinha ainda Poções, onde morava o resto da família biológica do meu pai e onde a própria Cotinha havia nascido e crescido. Em Poções também meu pai foi concebido, em condições bem complicadas.
Quanto ao dia chuvoso do início desse texto, o ano era 1991, e desconfio também que a intenção da viagem era apresentar minha irmã bebê à nossa avó biológica. Minha mãe deve ter sido muito persuasiva pra convencer meu pai a pegar estrada num dia horrível a fim de encontrar uma pessoa que ele nem queria realmente ver.
Minha avó adotiva, Izaura, era paciente e carinhosa comigo, mas um monstro de rispidez com a maioria dos outros seres da Terra. Um alvo constante de fúria era a cuidadora/empregada doméstica/”filha” de criação, vítima de abusos que eu jamais suportaria dos meus pais. Minha mãe sempre detestou Izaura, o que eu só fui descobrir muito depois, já que as duas aparentemente se davam bem.
Acho que a busca por Cotinha era também uma busca pela sogra ideal, mesmo sendo alguém que meu pai rejeitava. Pra minha mãe Cotinha era uma heroína de romance, injustiçada pela vida e afastada do seu filho querido pela bruxa da minha avó Izaura.
A primeira coisa que me chamou a atenção em Cotinha foi o fato de ela ter os olhos quase iguais aos meus, verdes do lado de fora, castanhos do lado de dentro. Minha avó materna, Safira, também tinha os olhos claros, só que mais claros. Meus pais e minha irmã tinham olhos escuros, assim como todo o resto da família.
Cotinha também me pareceu meio maluca, já que cobriu com panos todos os espelhos da casa e voltava a cobrir quando eu descobria. Ela dizia que era pra não atrair os raios, já que a tempestade era bem feia. Aquilo não fazia sentido nenhum pra mim, mas minha mãe não queria que eu discutisse, e reservadamente me avisou que eram manias de gente velha.
Cotinha me deu algum dinheiro, apesar dos protestos do meu pai. E ela deixou que eu levasse pra casa vários dos cartões de Natal que ela tinha, pra desespero da minha mãe, que depois mandou tudo de volta pelo correio.
Disseram que ela era a minha avó, então eu chamei de vó, o que não era esforço pra mim. Só meu pai que não chamava de mãe de jeito nenhum, e ficava muito sem graça quando ela insistia: “Ô Geo, não me chama de Cotinha”.
No ano de 1952 Cotinha era uma normalista de vinte e poucos anos, e tinha acabado de descobrir uma gravidez que era até eufemismo chamar de indesejada. Ela não era só uma mulher solteira do interior da Bahia lá na metade do século XX, era também uma mulher grávida do próprio cunhado.
Cotinha, ou Maria, que era o nome de verdade dela, vinha de uma família tradicional católica, como eram quase todas as daquela época. A ideia era a de se manter pura até casar, e casamento foi uma coisa que não aconteceu com Péricles, também conhecido como Lilo. Cotinha e Lilo namoraram, mas acabaram terminando, por iniciativa dela. Aí ele foi e casou com a irmã da ex.
Será que isso era normal lá nos anos 50?
Essa irmã de Cotinha se chamava Anita, e eu não me lembro dela. O que eu sei é que ela era gente boa, seguiu casada mesmo depois do chifre, não rompeu com a irmã e nunca culpou meu pai.
Eu não sei que tipo de relacionamento Cotinha e Lilo mantiveram depois de terem se tornado cunhados. Eu nem sei que tipo de pessoa Lilo era, já que eu não cheguei a conhecer o sujeito e só fui ver em foto no ano passado. Pra mim ele é o personagem de uma história distante, alguém que nem tem muito a ver comigo apesar de ter me cedido uma parte do seu material genético.
Pelo que me contaram Cotinha saiu de Poções pra Vitória da Conquista no início da gravidez e ficou lá até o parto. Através de um médico ela ficou conhecendo Izaura, uma senhora de quarenta anos, casada (mas viúva logo depois), sem filhos, e que tinha interesse em ficar com bebê.
Meu pai nasceu em janeiro de 1953, e foi entregue à minha avó Izaura na maternidade mesmo. Ele se chamou Geraldo porque nasceu no hospital São Geraldo, talvez fosse uma situação difícil demais pra ter criatividade, ou talvez fosse o catolicismo falando mais forte, não sei.
Também não sei como Cotinha se sentiu, só posso imaginar o desamparo dela diante de uma gravidez naquelas circunstâncias. Enquanto que o sujeito engravidador seguiu com a sua vida como se nada tivesse acontecido, e ainda teve mais uma penca de filhos legítimos, os famosos treze irmãos-primos do meu pai.
Toda essa família biológica era um peso porque meu pai sempre soube da existência dela. Ele nunca foi adotado formalmente, então o nome da mãe seguia queimando na certidão, junto com a ausência do nome do pai, o que machucava ainda mais.
(Naquele tempo nem que o pai dele quisesse poderia ter feito esse registro, filhos eram só os que nasciam dentro do casamento)
Cotinha morreu em 2005, e eu me lembro de quando ligaram lá pra casa pra avisar. Meu pai ficou quieto por várias horas, até que eu perguntei por que tanta tristeza, já que ele nem gostava dela.
“Ela era minha mãe, né, Camila? Ela era minha mãe”
E foi assim, num dia de muito sol, que meu pai se referiu a Cotinha como mãe, não mais “a genitora”, “aquela lá”, “a biológica”.
E aí não só ele entendeu parte do que ela passou, como ela se sentiu, mas também teve um pouco mais de paz com aquela situação de tanto sofrimento e escolhas difíceis ocorrida 52 anos antes.
a morte escancara tanta coisa dentro e fora da gente, né?
Camila, tampar espelhos para nao atrair raios era um costume em muitas familias. Claro que os espelhos refletem raios mas nao os atraem. Contudo, tradicoes de outros tempos, como colocar a vassoura atras da porta da cozinha para a visita desagradavel ir embora rapido, entre outras cositas más... rsrs.